Os municípios e a Arbitragem envolvendo a administração pública

Após as experiências estaduais e federal com arbitragem envolvendo a Administração Pública nos últimos anos, começamos a assistir a chegada da arbitragem aos municípios brasileiros. Dado o elevado número de entes municipais, seus portes diferenciados e diante da ausência de estatísticas específicas dessa nova realidade, ainda não possuímos números oficiais de arbitragens atualmente em trâmite envolvendo a administração municipal

Sem prejuízo disso, iremos apresentar impressões e prospecções sobre esta recente experiência, aduzindo pontos de interesse e de atenção para balizar possíveis boas práticas que possam ser levadas em consideração pelas municipalidades no uso e na implementação da arbitragem em seus contextos mais específicos.

Como “estudo de caso”, trataremos da organização e da prática arbitral levada a efeito pela Cidade de São Paulo, inserida em sua novel Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Municipal Direta e Indireta (Lei nº 17.324, de 18.03.20, regulamentada pelos Decretos nº 59.963/20 e nº 60.939/21).

Primeiramente, com o intuito de extrair algumas sinalizações parciais, vale indagar acerca da iniciação dos municípios com a arbitragem: qual o perfil da adoção do instituto como método de solução de litígios administrativos?

A experiência municipal com a arbitragem pode ter se iniciado como uma escolha estratégica vinculada a melhores práticas de governança contratual, a partir da observação do que vem acontecendo na União Federal e em alguns estados da Federação, como São Paulo, Minas Gerais, e Rio de Janeiro, entre outros. O problema é que aqui a inclusão da cláusula arbitral geralmente ocorreu com redações desprovidas de maiores reflexões ou customização ao contrato em si, em um exercício usual de “copia e cola“, o que não ensejou um real aprendizado e preparação para as experiências acontecerem com mais preparação e organização em torno da arbitragem.

Na mesma linha, alguns municípios adentraram na prática arbitral nos anos 2000 e 2010 por determinação de organismos multilaterais de financiamento, como Banco Mundial, BID, ex-Banco de Tokyo, os quais preveem em suas guidelines a arbitragem e os dispute boards como métodos a serem adotados por entes públicos que se candidatam a financiamentos e empréstimos de recursos para utilização em contratos de infraestrutura e afins.

A rigor, embora de observância não vinculante, essas previsões acabaram por ser interpretadas por esses organismos com alguma cogência, e moldaram cláusulas compromissórias em contratos de obras públicas variados e contratos de concessão/PPPs em serviços e infraestruturas como transporte coletivo, saneamento básico (sobretudo água e esgoto), aterros sanitários e, mais recentemente, iluminação pública.

Depois, como inovação na matéria, tem-se o caso da cidade de São Paulo, que primeiro instituiu uma Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta, com os objetivos de “I – reduzir a litigiosidade; II – estimular a solução adequada de controvérsias; III – promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos; e IV – aprimorar o gerenciamento do volume de demandas administrativas e judiciais” (artigo 1º da Lei nº 17.324, de 18/3/2020).

Coordenada pela Procuradoria Geral do Município, a política tem na arbitragem um dos seus meios para a solução de conflitos públicos, desde que se tratem de direitos patrimoniais disponíveis, nos termos da Lei Federal nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Artigo 7º). Por sua vez, a arbitragem foi regulamentada pelo Decreto nº 59.963/20, sendo que atualmente no município encontra-se tramitando um único caso de arbitragem.

No que tange ao âmbito normativo, para além da autorização legal incluída na Reforma da Lei de Arbitragem Brasileira (2015) e da Lei federal nº 13.867/19 que prevê a possibilidade de arbitragem em matéria de indenizações decorrentes de desapropriação por utilidade pública, os municípios detêm duas autênticas janelas de oportunidade para regulamentar a arbitragem em seus domínios.

A primeira, decorre da reforma do Marco Legal do Saneamento Básico, implementada pela Lei federal nº 14.026/20. De interesse direto dos municípios em razão da titularidade dos serviços de saneamento básico, dentre as inúmeras inovações, a lei estimula a desestatização desses serviços e o uso da arbitragem nos contratos de saneamento básico, nos termos do novo artigo 10-A, § 1º, pressupondo a necessidade prévia, se não de uma regulamentação da matéria, de alguma familiaridade com o tema.

A segunda janela de oportunidade relaciona-se à inclusão da arbitragem como um dos Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias (Mascs), previstos mais detidamente nos artigos 151 a 154 e, igualmente, no artigo 138, incisos II e III, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei federal nº 14.133/21). Como se está diante de competência discricionária para se valer da arbitragem (ou não), faz-se necessário regulamentar previamente a matéria na esfera municipal — como fez, por exemplo a cidade de São Paulo — o que conferirá maior segurança jurídica a todos os atores públicos e privados envolvidos, representando forte incentivo normativo e de gestão pública para o uso e expansão da arbitragem.

Nesse ponto também a experiência da cidade de São Paulo revela-se muito bem construída em termos legislativos, normativos e organizacionais: uma política de gestão pública integrada em torno dos Mascs, e não somente da regulamentação da arbitragem. Inaugura-se um verdadeiro “Sistema de Gestão de Conflitos Públicos” no âmbito municipal, com segmentação e especialização de cada um dos métodos, experiência progressiva em sua adoção, gerando-se boas práticas a partir de casos pilotos, necessária capacitação da advocacia pública e construção de cases.

No limite, o conjunto dessas providências tende a imprimir uma mudança cultural significativa na gestão dos conflitos públicos, por meio da autocomposição administrativa e da heterocomposição arbitral — portanto em prol do bom uso dos Mascs em geral, e não somente da arbitragem. Um ganho de escala considerável, para os municípios, em termos de eficiência e produtividade, ao longo do tempo, no tratamento adequado dos conflitos.

Em face do exposto, e tendo por referência o estudo de caso da cidade de São Paulo, cabe ressaltar que a experiência paulistana com arbitragem, embora inicial, suscita a relevância da prévia adoção de medidas e providências não somente legislativas e normativas, mas igualmente de estruturação de um ambiente organizacional adequado para enfrentar e desenvolver a arbitragem enquanto prática efetiva, in casu, inserida em uma política de desjudicialização de litígios públicos.

Temas como necessidade de sequenciamento e monitoramento dos contratos públicos que contenham cláusulas compromissórias e capacitação dos quadros da advocacia pública para bem lidar com a arbitragem — sem perder eficiência na gestão dos conflitos — podem compor uma agenda dos municípios no escopo de regulamentar a arbitragem em seus domínios territoriais.

De outro lado, assim como realizou a cidade de São Paulo, entende-se como referência mestra nesse contexto a construção de um autêntico sistema de gestão de conflitos públicos no âmbito municipal, o que significará não somente ganho de escala na resolução dos conflitos, mas servirá de prevenção para não se estressar demasiadamente a adoção (desenfreada) da arbitragem para casos em que mediação, conciliação ou dispute boards possam ser mais eficazes para a solução do litígio.

Finalmente, assim como ocorre na cidade de São Paulo, a instituição de uma Câmara de Solução de Conflitos da PGM — Decreto Municipal nº 57.262/2016 — atualmente Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos (artigos 24 e 25 da Lei nº 17.324/20), soa igualmente como uma excelente providência municipal, pois representa uma boa prática na temática da resolução de conflitos por meio de autocomposição administrativa, e que ao fim e ao cabo contribui para especializar e fortalecer a solução pela via arbitral nos municípios, uma vez que a solução arbitral ficaria mais restrita aos conflitos contratuais que não puderam ou não foram resolvidos na própria esfera administrativa.

Texto de Gustavo Justino, Via Conjur.

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